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A Cultura e as Comunidades de Leitura


“aspira a contagiar a los demás ara que sean felices cada cual a su perspectiva”

Ortega y Gasset en El Espectador

“Para o linguista, a comunicação é um facto e mesmo até o facto mais óbvio. As pessoas, efectivamente, falam umas com as outras. Mas, para uma investigação existencial, a comunicação é um enigma e até mesmo um milagre. Porquê? Porque o estar junto, enquanto condição existencial da possibilidade de qualquer estrutura dialógica do discurso, surge como numa multidão, ou de vivermos e morrermos sós, mas, num sentido mais radical, de que o que é experienciado por uma pessoa não se pode transferir totalmente como tal e tal experiência para mais ninguém. A minha experiência não pode tornar-se directamente a vossa experiência. Um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode transferir-se com tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação. Eis o milagre. A experiência experienciada, como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação torna-se pública. A comunicação é, deste modo, a superação da radical não comunicabilidade da experiência vivida enquanto vivida.

RICOEUR:1996, pp27-28





A Cultura e as comunidades de leitura

“Uma vez constituída uma civilização, uma cultura, não só reformula sem cessar aquilo que a funda, mas nessa reformulação se aprofunda”
Eduardo Lourenço

“ Sempre que estudo os problemas humanos tenho procurado cuidadosamente não escarnecer, lamentar, ou condenar, mas apenas compreender”
Espinosa

“Yo soy yo y mi circunstancia”
Ortega y Gassett



É ideia corrente que a língua é o espelho de formas comportamentais da sociedade a que corresponde. A linguagem, no seu sentido mais lato, tem uma importância fundamental para o desenvolvimento e continuação do comportamento-padrão, ou dito de outra forma, a sobrevivência e expansão dos traços culturais da sociedade a que corresponde.
As abstracções e os conceitos imaginários adquirem, quando colocadas em palavras, uma realidade que sem o uso da linguagem seria impossível transmitir.
O imaginário, individual e colectivo, não é um mundo que se possa contemplar, mas no qual estamos imersos.
A ordem histórica não nos confere um estatuto identitário, se a inclusão do imaginário, crenças e valores não for permitida.
A sua assimilação faz parte da cultura de um povo; é para o individuo, ou sociedade um reservatório de imagens de uma forma tão dinâmica que tem o poder de conferir um sentido que o aspecto empírico da vida não confere.

“ Imaginário, porque a história da humanidade é a história do imaginário humano e das suas obras. História e obras do imaginário radical, que aparece a partir do momento em que há uma colectividade humana: imaginário social instituinte que cria a instituição em geral (a forma instituição) e as suas instituições particulares da sociedade considerada, imaginação radical do ser humano singular”
(CASTORIADIS: 1999, PP.97)

Toda a sociedade humana tem uma língua e uma cultura interdependentes entre si. Por definição, a língua diz respeito às formas de comportamento que podem ser vocalizadas enquanto a cultura está relacionada com inúmeras actividades que podem nunca ser expressas em palavras nem acompanhadas pela fala.
Os seres humanos são os únicos capazes de atribuir valores simbólicos e arbitrários a expressões vocais.

“ A espécie humana é obrigada a inventar-se e a fazer-se a si própria, a criar o seu sentido e a dar-se a sua própria lei. Mas trata-se de uma verdade que lhe é entre todas difícil de enfrentar e assumir, pois implica que o modo de Ser do real não obedece a qualquer ordem una de determinações última ou primeira, que o fundamento do nosso ser e do nosso fazer não é sólida e maciçamente garantido por anterioridade lógica ou final alguma, mas que, sendo incerta e visitada intimamente pelo caos, a nossa natureza, é sem modelo, como o poema, que devemos governar-nos em pleno acontecer”
(SERRAS PEREIRA: 1999,pp.37)

As línguas servem como sistemas de comunicação entre os membros de uma sociedade que tenham aprendido a associar os mesmos significados, os mesmos sons. No entanto, deve-se considerar que uma língua tem o valor de comunicação apenas na sociedade onde é utilizada. Para além dela pode ser reduzida à inutilidade devido à inexistência de partilha do mesmo código.
Os linguistas de formação antropológica, como Boas, Sapir e Bloomfield, almejam vários objectivos:
- Querem registar o maior número possível de línguas primitivas; pretendem analisar sons e modificações gramaticais pelas quais se pode comunicar uma variedade de significados; procuram mostrar até que ponto uma língua pode reflectir o ambiente cultural onde estão inseridos os falantes; querem mostrar as modificações históricas provocadas numa língua por factores internos ou externos (empréstimo de outras línguas).
Apesar de até há pouco tempo se pensar que os pensamentos ditavam a escolha de palavras, hoje esta teoria é posta em causa.
Whorf[1] afirma que um padrão socialmente aceite de emprego de palavras é frequentemente anterior a certas formas culturalmente aprovadas de pensamento e comportamento.
Exprimimos os nossos pensamentos em palavras mas as palavras ajudam-nos a moldar os pensamentos.
Toda a língua reflecte a cultura em que está inserida; nenhuma existe fora de uma sociedade e da sua cultura.
Sem que exista uma cultura universal não há possibilidade de existir uma língua global.
Para se analisar a realidade histórica e social da obra artística têm de ter-se em conta os «meios» artísticos e não somente os valores artísticos (ideias poéticas, musicais, etc.).
Será possível pensar que a presença da história de determinada sociedade, numa peça musical, pintura ou filme, se faz sentir da mesma forma que num romance ou poema?
Pensamos que não. Os meios semânticos da poesia ou literatura são diferentes dos meios semânticos musicais.
O que têm em comum é o facto de serem unidades de um múltiplo, ou seja, do pensamento.
A obra literária é considerada como um sistema de significação sustentado por um conjunto informacional que é a linguagem articulada (português, no nosso caso), acrescentada de uma metalinguagem que podemos chamar de conotação. A literatura não é composta de abstracções, ela alimenta-se dos sentidos e da imaginação.

“Só posso nomear os objectos. Eles são representados por sinais. Só posso falar deles, não posso exprimi-los. Uma proposição só pode dizer como uma coisa é, não o que ela é.”
(Wittgenstein, Tractactus, 3.221)

A literatura, principalmente a poesia, alimenta-se deste espaço, deste vazio entre o objecto e o sinal.

A Arte e a filosofia tentam dar uma forma ao caos que subjaz ao cosmos, ao mundo, ao caos que está por trás das aparências.
Assim, a linguagem na sua natureza metafórica mostra-se como tradução. Esta relação de “valer por...” da função simbólica não é apenas uma característica interna de cada língua mas configura a relação da linguagem com o mundo incluindo a história humana e a realidade psíquica do indivíduo.

A língua veicula as significações (como já foi referido) que configuram o seu mundo, permitem as transmissões de costumes e valores, etc. A codificação e fixação do sentido é homólogo das formas de organização social, enquanto, de muitas formas, as torna viáveis.

“ A entrada na linguagem e no Mundo das significações partilhadas é investida enquanto tradução do corpo-a-corpo inicial com o mundo-mãe, o que significa que a realidade psíquica singular do sujeito aceita a imposição de se traduzir na língua (materna) do seu mundo, na medida em que minimamente lhe seja dado traduzir essa linguagem (...)”
(SERRAS PEREIRA:1999, pp.27)

Tal como a sociedade, a língua encontra-se em transformação permanente. Algumas línguas conservam-se numa imobilidade a que podemos chamar de artificial. Uma língua comum transforma-se constantemente; aparecem palavras novas e outras “morrem”. A gramática sofre adaptações, o que é permitido torna-se tabu e vice-versa.
Existem momentos em que as línguas se transformam de forma vertiginosa e, por outro lado, existem também momentos em que as mesmas se tornam extremamente conservadoras.

As palavras não são invulneráveis nem imortais.

Esta envolvência cultural é parte integrante do ADN da Interpretação.
O processo de leitura, apesar de pessoal, é marcado inequivocamente por comunidades interpretativas que nos fornecem protocolos de leitura.
De certa forma, a interpretação ou estratégia interpretativa é condicionada pelo sistema cultural, ou, se preferirmos, comunidades interpretativas.
Ana Maria Martinho (a autora o aborda a questão do canône, que falaremos mais à frente) mencionando Guilhory afirma o seguinte:

“ Para J. Guilhory, o histórico da formação do canône é a história das formas pelas quais as sociedades organizaram e regularam práticas de leitura e escrita. A escola será precisamente a principal instituição através da qual se exerce esta regulação, tendo emergido apenas, ou sobretudo, como instituição para preservar obras. Foi acometida da função social genérica de distribuir várias formas de conhecimento incluindo o conhecimento de como ler e escrever e o que ler e escrever: “the problem of the cânon is a problem of syllabus and curriculum, the institutional forms by which Works are preserved as great Works”. O que nos parece válido para todas as realidades educativas e literárias que conhecemos” (MARTINHO:2001; pp.235)

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com


[1] “The Relation of habitual thought and behavior to language”


Bibliografia

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