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Balanço Correntes d`Escritas 2015



Há uma história nebulosa e talvez ficcionada nas Correntes d`Escritas. Vila-Matas escreveu um dia uma crónica sobre a edição das Correntes onde ele ia participar. Nesse texto, foram descritos ao pormenor aspectos do hotel, do quarto e das actividades dessa edição. Só que o autor escreveu esse texto antes de chegar à Póvoa. Propositadamente seduziu o leitor a entrar na sua “mentira”. A partir de uma verdade, construiu uma ficção. E foi convincente. A 16ª edição das Correntes d`Escritas foi, como todas as anteriores edições, o local de encontro entre a ficção e a realidade, entre escritores e leitores.

Durante o período entre o dia 25 e 28 de Fevereiro, o Cineteatro Garrett acolheu pela primeira vez as palavras de novos e velhos escritores. O etéreo tem uma nova casa.
A liberdade e suas diversas conjugações foram abordadas na Conferência de Abertura, protagonizada por Guilherme d`Oliveira Martins (“Quem tem medo da Cultura?”), em oito “Mesas” (sete na Póvoa e uma em Lisboa), quatro “Conversas”, várias visitas a escolas, o lançamento de cerca de 20 obras (podem ler, no Diário Digital, a apresentação de “A Casa das Rosas”, “Ana de Amsterdam e “Desamparo”), a apresentação de revistas, exposições de pintura e fotografia, poesia nas ruas, o filme “Os Maias”, o documentário “Homem Ocupado - em casa de Córtazar”, Feira do Livro e, obviamente, os diversos prémios literários.
Fernando Echevarría, com o livro “Categorias e outras paisagens” (Afrontamento), foi anunciado no Casino da Póvoa como o vencedor do Prémio Casino da Póvoa da 16ª edição das Correntes.
Na tradicional sessão de abertura, o público teve oportunidade de ouvir o discurso de Almeida Faria, o homenageado desta edição. Foi um exemplo de inteligência e de como o biografismo (ou a realidade) é importante na produção ficcional.
Guilherme d`Oliveira Martins deu o mote com a sua conferência:
- “Medo da Cultura é afinal ter medo da liberdade e democracia”
A primeira Mesa iniciou-se com um conjunto de intervenções protagonizadas por Leonardo Padura (Cuba), Manuel Rui (Angola) e Martinho da Vila (Brasil) sobre o tema “A Literatura é um poço de liberdades”. As diversas perspectivas individuais, contextualizadas por diferentes geopolíticas, permitiram uma visão plural sobre o conceito de liberdade. O moderador José Carlos Vasconcelos (português), responsável pelo poema tornado ferro em pedra logo na entrada do Cineteatro Garrett, orientou a conversa. Martinho da Vila, após a sua comunicação, terminou a 1º Mesa declamando um poema de Drummond e cantando, a capella, uma música sua.
As declinações da palavra liberdade foram constantes nas restantes mesas. Ana Luísa Amaral, Ana Paula Tavares, Germano de Almeida, Inês Pedrosa, Isabel Pires de Lima e Jorge Marmelo expuseram os seus argumentos sobre “A verdade dos prémios literários: o poder das narrativas e/ou as narrativas do poder” (Mesa 2), com moderação de Ana Gabriela Macedo. Ainda no mesmo dia, “O poder das palavras faz-se de liberdade e silêncio” (Mesa 3) contou com contribuições de António Cabrita, Clara Usón (podem ler sobre “ A filha do Leste”, no Diário Digital), José Mário Silva, Manuela Gonzaga, Vergílio Alberto Vieira e moderação de Michael Kegler.
Para Manuela Gonzaga, autora de “Xerazade – a última noite” (Quetzal), a palavra é a antítese da liberdade. A palavra é uma arma de poder; pode libertar e pode prender. O poeta escava silêncios quando escreve um poema.
“O silêncio é o sal da escrita em construção” (Mesa 4), com Andréa Zamorano, Fausta Cardoso Pereira, João Felgar, Paulo José Miranda e Nélson Saúte, e “Da escrita em ruínas transpiram as intermitências da vida” (Mesa 5), com Afonso Cruz, Ana Cássia Rebelo, Bruno Vieira Amaral, Pedro Teixeira Neves e Rui Zink foram as Mesas do penúltimo dia das Correntes d`Escritas.
Entre as intervenções, destaque-se o texto de Bruno Vieira Amaral. Foi dos momentos mais conseguidos e com mais conteúdo de todas mesas. Apoiando-se em imagens projectadas na tela do Anfiteatro e concentrando-se na palavra “ruínas”, o autor de “As Primeiras Coisas” foi sucinto, claro e pedagógico.
“Não há ruínas mais comoventes do que os rostos humanos”, afirmou.
 Só Gonçalo M. Tavares teve uma intervenção ao nível de Bruno Vieira Amaral.
Na penúltima Mesa, a sexta, Cláudia Clemente, Mário João Alves, Renato Filipe Cardoso, Uberto Stabile e Carlos Cástan (aniversariante) falaram sobre “Da vida restam memórias, vazio, literatura”. Depois do público cantar os parabéns a Castán, o autor de “Má Luz” afirmou que “vazio e memória são palavras irmãs”. O momento mais… exótico foi protagonizado por Renato Filipe Cardoso. O poeta depositou um alguidar sobre a mesa e, em actos simbólicos, foi enchendo-o com uma revista porno (símbolo da literatura), um Jornal de Letras (crítica literária), uma foto do cérebro + a de um lobo (lobo cerebral) + um frasco de memofante. Tudo em representação da memória. A representação do vazio foi efectuada com um bife do vazio. E terminou com um poema seu. Chama-se “Lápide” e diz o seguinte: “Eu bem disse que estava doente”.
Na última Mesa do último dia, com o título “Literatura: uma questão de inteligência invisível”, Gonçalo M. Tavares descodificou a linguagem e a necessidade do ser humano em comunicar. A capacidade invulgar de um dos grandes autores de língua portuguesa prendeu a atenção do público através de uma comunicação capaz de fazer interrogar sobre os mais consolidados pontos de vista.
“Eu acredito – é uma teoria puramente ficcional e literária- que o homem se tornou bípede para deixar de escrever no chão e escrever nas paredes. A escrita animal escreve-se no chão. (…) Eu acredito que os animais escrevem e lêem. Quando um animal deixa vestígios certamente está a deixar traços. É a sua escrita. Quando um outro animal volta àquele espaço, interpreta os traços. (…) É uma diferença básica para um bom leitor animal: é um animal para eu comer ou é um animal que me pode comer? Ser um bom leitor animal tinha como diferença sobreviver ou não. Eu diria que estamos aqui hoje porque somos herdeiros dos animais que eram bons leitores. Isto é uma grande responsabilidade para cada um de nós. Escrever é deixar vestígios, pegadas, que anunciam algo. Escrever é a pegada do elefante; não é o elefante. É o leitor que tem de ver o elefante; tem de interpretar o anúncio do elefante”
Como sempre, “the one and only” Onésimo Teotónio de Almeida encerrou as participações. Há 16 anos que assim é. Gonçalo M. Tavares, Carlos Quiroga, Margarida Fonseca Santos, Mário Cláudio e Sérgio Godinho tiveram oportunidade de ouvir o académico da Brown University, dos Estados Unidos, a afastar o cinzentismo universitário com o seu humor tão vivo e peculiar.
Sobre o livro lançado em sua homenagem, editado pela Opera Omnia, o professor afirmou que “"é o maior pacote de mentiras que circula por aí depois do Sócrates (...) Posso dizer como ele: «Tudo o que dizem por aí é furto do meu trabalho» "
Onésimo Teotónio de Almeida é um dos símbolos das Correntes d`Escritas.
A oitava (e última Mesa) decorreu em Lisboa no passado dia 02 de Março, no Instituto Cervantes. “A Inteligência é a alma dos livros” contou com as colaborações de Bruno Vieira Amaral, Carlos Castán, Clara Usón, Faustas Cardoso Pereira e Leonardo Padura.
Mas as Correntes são ainda muito mais do que a intensa programação literária. A oportunidade para conversar com autores é inigualável.
Almeida Faria, por exemplo, foi solicitado quando tomava o pequeno-almoço no hotel. Com a sua educação e inteligência, pediu ao leitor para se sentar e conversar um pouco.
Um casal com uma criança de colo esteve todos os dias no mesmo camarote a assistir às Mesas. Era dos primeiros a chegar (havia fila para entrar no auditório), dirigia-se para o camarote mais próximo do palco. Depois, o pai e mãe tomavam conta, em turnos, da criança pelos corredores do Cineteatro.
São também estas oportunidades que tornam as Correntes lugares de afecto e reencontro. Uma festa de família em torno da literatura. Uma família grande que faz questão de estar presente.
O Milagre das Correntes continua em 2016.

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