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“Tinto no Branco-Festival Literário de Viseu”: Embriagai-vos com literatura.











“Tinto no Branco-Festival Literário de Viseu”: Embriagai-vos com literatura.

A literatura e do vinho têm uma alegre e antiga ligação, agora aproveitada pela Câmara Municipal de Viseu e a Booktailors  (produção executiva) na criação do "Tinto no Branco- Festival Literário de Viseu", que ocorreu entre 2 e 4 de Dezembro. É a segunda edição de um festival em crescendo. De 2015 para 2016, manteve-se a literatura e o vinho. A afluência de público aumentou. 

Entrava-se no Solar do Vinho do Dão e dificilmente se resistia à tentação: indo para a esquerda, encontrava-se a doçaria regional; virando à direita, entrava-se no salão principal onde decorria a prova de vinhos de inverno. 
Satisfeita a gula, ou pelo menos acalmada, o público poderia dedicar-se às letras. Contígua ao salão principal, a capela do Solar recebeu os participantes nas mesas de debate e os muitos espectadores que, de copo na mão, ouviram os intervenientes. 
Em redor da palavra literária, o público ouviu conversas sobre Deus, sobre as civilizações fundamentadas nas religiões do Livro, sobre o futebol, adorado numa catedral com uma Luz diferente, e os seus fanáticos; sobre a cidade e sobre a casa na poesia. Sobre as pessoas. Principalmente sobre as pessoas e as palavras que as unem.
O tema desta edição – “Amor” - teve em "Amor de Perdição", de Camilo Castelo Branco, o seu eixo mais importante.
Amor como o de Simão e Teresa, versão camiliana de Romeu e Julieta, foi debatido por o escritor João Tordo e o poeta Renato Filipe Cardoso, em "O nosso Romeu e Julieta". São histórias de amores em cidades que tornam esses lugares mais ricos, mais humanos. Têm capacidade, como afirmou Renato Filipe Cardoso, para nos fazer sonhar com um amor de morrer por ele.


Mas afinal para que serve um festival literário? 

Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, Almeida Henriques, Presidente da Câmara Municipal de Viseu e o editor Francisco José Viegas (moderador)  abriram o festival com "Os amores às cidades".  
As cidades são mais do que monumentos. As cidades de Júlio Dinis, de Camilo Castelo Branco ou de Agustina ajudam a imaginar e a pensar o lado humano.
Os escritores escrevem o que observaram, seja através da janela de sua casa ou vagueando pelas ruas. Como o malogrado Manuel António Pina, lembrado por Rui Moreira e, num outro momento do festival, pela poetisa Inês Fonseca Santos em conversa com Miguel-Manso.
 "As cidades são peças de relojoaria", afirmou Rui Moreira. Segundo o Presidente da Câmara Municipal do Porto, a cultura é um factor de união entre as pessoas. O conhecimento delas próprias e dos locais a que pertencem dependem da facilidade de acesso à cultura.  
Os festivais literários são um instrumento económico e um factor de união. A democratização do acesso à cultura é um investimento, segundo os dois autarcas, para a qualificação humana e satisfação da necessidade de pertença. 
Para Rui Moreira, "A cultura bem desenvolvida tem enorme impacto na coesão social, se souber não ser de classes"
A aproximação dos escritores ao público, em eventos como "Tinto no Branco", democratiza a troca de opiniões, facilita o acesso ao conhecimento. Essas pessoas, tantas vezes transformadas em personagens, podem contactar os autores.

A vontade de matar o pai... 

As personagens das histórias parecem ser do bairro do leitor, talvez um vizinho ou uma vizinha, como as personagens criadas por Bruno Vieira Amaral. São próximas nos hábitos e passeiam pelos locais que compõem o quotidiano dos habitantes. Seja na mesma época ou em época já mais distante do ano que o texto foi escrito. 

Bruno Vieira Amaral é um dos casos mais relevantes a perceber que há muita matéria literária nas pessoas comuns. O autor de "As Primeiras Coisas", livro passado no Bairro Amélia, conversou com Fernando Pinto Amaral e Maria João Costa (moderadora) sobre os escritores que deixam seguidores, talvez discípulos, entre quem os lê. 
Na mesa "A morte sem mestre", com evidentes ligações a Herberto Hélder, Bruno Vieira Amaral referiu a vontade de, hoje, ninguém querer o rótulo de mestre ou de discípulo. A relação com as influências é de desafio. Não há negação, mas antes uma assimilação dessas influências, sem as fazer notar. 
"Não se consegue ser um bom escritor sem consciência do que está para trás.", afirmou. Essa consciência pode ter demasiado peso e ser bloqueadora. Há uma vantagem para os autores mais novos: estão vivos. E isso implica terem a possibilidade de pensar os problemas actuais com as suas próprias "armas" e com as "armas" fornecidas pelos autores canónicos. 
Fernando Pinto Amaral partilha da mesma opinião e acrescentou haver a necessidade de "matar o pai". 
"Não há geração espontânea", afirmou. O modo de relacionamento com esses autores é que mudou a partir do Romantismo, segundo o autor do livro de poemas "Manual de Cardiologia". Até então, o conceito de autor era diferente. A notoriedade do autor é hoje maior do que antigamente.
Em vez de próxima do realismo, abordado na primeira mesa, a literatura é agora mais pessoal. A atmosfera é menos abrangente e mais individual. A concentração no indivíduo fecha a perspectiva.
A narrativa assente em como o individuo experiencia determinado acontecimento implica uma nova linguagem. É a actualização das armas, referida por Bruno Vieira Amaral. Há também a experiência do leitor, construída ao longo da vida, que é levada para a leitura. E a própria leitura faz parte dessa experiência.
O poeta Miguel-Manso, na mesa "Descontrai, Simão", viria a afirmar que "a palavra transforma e molda a realidade".  

"A Literatura escorrega melhor..." 

Um grande exemplo da relação próxima entre leitura e vida é Álvaro Laborinho Lúcio. O juiz, agora aposentado, assimilou novos códigos de linguagem na escola para meninos pescadores. Passado algum tempo da matrícula, já ele tinha assimilado novo léxico. Talvez tenha sido nessa escola que começou o seu interesse pelo cidadão mais anónimo, mais esquecido. 
Para falar de literatura, um copo de vinho do Dão. "A literatura escorrega melhor", afirmou Laborinho Lúcio. Ou Álvaro, como prefere ser chamado.
Em "Entrevista de Vida", conduzida por Tito Couto, o antigo ministro revelou ter levado para os seus livros todas as suas leituras e todas as pessoas extraordinárias que foi conhecendo ao longo da vida.
Pretende lembrar quem sempre é esquecido. E levou-as para "O Chamador". 
Álvaro Laborinho Lúcio vê literatura nas pessoas "comuns". O cidadão anónimo retratado por Aquilino, Camilo, Agustina ou Manuel António Pina, como foi dito por Rui Moreira e Almeida Henriques, tem na literatura de Bruno Vieira Amaral e Laborinho Lúcio espaço privilegiado.
A realidade é a base da ficção. A única verdade que existe está no texto. Não há, para o autor de "O Chamador", a transposição da verdade do real para o romance. Ele, como escritor, é o encenador dessas personagens. 
A ligação entre o Teatro e a Justiça foi elaborada de forma brilhante e pedagógica. O autor relacionou a construção do palco e dos diferentes papéis das personagens com a organização de um tribunal. 
A experiência forma a leitura; a leitura forma a experiência. São interdependentes. Álvaro Laborinho demonstrou a dedicação dada à palavra, seja mais denotativa (nos tribunais) ou conotativa (na ficção).
Às voltas com a denotação ou conotação da Palavra anda o Ser Humano há milhares de anos. Por isso, o trabalho de Frederico Lourenço, ao traduzir a Bíblia, é pouco menos que hercúleo. Foram as suas leituras dos clássicos e o conhecimento da língua grega que o capacitaram a executar tal tarefa. Frederico Lourenço fez de toda a sua experiência de leitor ferramenta para clarificar o sentido do Livro fundador de civilizações. Mais do que um livro, a Bíblia é "uma indispensável biblioteca", como escreveu Tolentino de Mendonça num artigo do “Observador”.
O poeta Daniel Jonas, o jornalista António Marujo, distinguido em 1995 e 2006 com o Prémio Europeu de Jornalismo na Imprensa Não-Confessional (instituído pela Conferência das Igrejas Europeias e pela Fundação Templeton), Jorge Sobrado (moderador) e Frederico Lourenço conversaram sob o mote "Tomai todos e bebei". 
A palavra traduzida, a palavra poética e a jornalística na mesma discussão. Os acessos ao sentido, divino, metafórico ou denotativo, estiveram na mente do muito público ali presente. São diversos os véus que mistificam o sentido. Feitos pelos homens para os homens. 
A seriedade do tema contrastou com as palavras de António Botto, Bocage, Alexandre O´Neil na voz de Renato Filipe Cardoso, em "Missa Mal Dita". Na capela do Solar do Dão houve espaço para muita gente, mas não para a heresia. 

 “Uma curva belíssima, uma equipa fantástica, és a nossa fé… “

Uma das melhores mesas estava guardada para o último dia. Envolvia religião, cânticos e muita fé: o futebol. Olhando-se para as garrafas de vinho do Dão sobre a mesa, podia-se imaginar quantos copos já teria bebido Fernando Correia devido aos muitos anos de jejum do seu Sporting; ou quantos litros foram necessários a Leonor Pinhão para esquecer o golo do Kelvin; e ainda quantos copos terão sido tomados por Pedro Marques Lopes para perceber os desenhos do treinador do seu Futebol Clube do Porto. Na capela, bem mais pequena que a catedral da Luz, Leonor Pinhão disse que raramente bebia, mas que realmente os penaltis lhe causavam muita angústia. Na mesa "A angústia do enólogo no momento do penalty", três entendedores de futebol demonstraram que o "Fair Play" não é uma treta. Numa mesa que mereceria prolongamento, falou-se sobre a necessidade de pertença a uma "tribo", a de cantar os hinos aos clubes e aos jogadores, sobre manter rotinas de superstição e a de gritar golo como se se estivesse a chamar por Deus. Falou-se em arrancar relva e benzer-se, em santinhos beijados e postos nos bolsos, em roupa que se usa todos os jogos.
Uma questão de fé, numa religião politeísta, em que os deuses pontapeiam, correm, sujam-se e magoam-se para levar alegria às suas pessoas, aos seus adeptos. 
Pedro Marques Lopes e Leonor Pinhão, sob a batuta de uma voz de sempre, driblaram agruras e conseguiram transmitir o amor por este fenómeno mundial chamado futebol. A ira dos fanáticos ficaria para a conversa entre o jornalista Paulo Moura e Francisco Mendes da Silva, advogado e membro do CDS-PP. Pedro Vieira moderou a conversa sobre "As Vinhas da Ira". 

Mais do que um clube, uma religião... 

Segundo Paulo Moura, há tendência em compararmos o que se passa hoje com épocas anteriores, seja antes do ano 1000, apontado como o fim do mundo, ou com as duas guerras mundiais. A experiência como repórter em ambientes de guerra avaliza as opiniões do autor de "Depois do Fim" (Elsinore). Segundo Paulo Moura,  é perceptível que o confronto entre a civilização do Livro (Cristianismo ou Islão) e o comunismo é algo anacrónico. Estamos perante uma nova realidade. O confronto entre o islamismo radical e o ocidente veio colocar problemas à Europa. Aliás, somos eurocêntricos. Na perspectiva da China, que tem índices altos de produtividade e nenhum problema com terrorismo, não há crise.
Existe sempre tendência para pensar que "Winter is coming", conforme é afirmado na "Guerra de Tronos". No entanto, existem soluções para os problemas contemporâneos, segundo Francisco Mendes da Silva. A sorumbática Europa terá o problema resolvido quando o Islão moderado descredibilizar as interpretações radicais do Corão.
Paulo Moura discorda. Segundo o autor de "Depois do Fim", será muito difícil que sejam os moderados a resolver o problema, pois, algumas vezes, nem conseguem disfarçar uma certa simpatia por alguns movimentos radicais. 
Os monumentos, as cidades, as casas e os indivíduos são destruídos pela radical interpretação de um texto pretensamente divino, por palavras que afastam as pessoas umas das outras. Aleppo está muito longe de Viseu. Uma, destruída pela interpretação; outra ainda mais coesa, tolerante e acolhedora nos dias em que recebeu opiniões tão diferentes sobre assuntos relacionados com a ficção ou a não-ficção. 
A organização do "Tinto no Branco- Festival Literário de Viseu" mostrou-se agradada com o balanço do festival. Cerca de 6000 pessoas passaram pelo Solar do Vinho do Dão, provando os vinhos de inverno e participando nas mesas, “workshops”, apresentações de livros, sessões de magia, provas de vinhos entre muitas outras actividades. A 3ª edição de "Vinhos de Inverno", que contempla a 2ª do festival literário, tem vindo a crescer na programação e no público presente. A aposta, segundo a organização, será para manter, pois é um programa diferenciador tanto no enoturismo como no panorama literário nacional. 

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