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FESTIVAL LITERÁRIO DA MADEIRA: MUITO MAIS DO QUE LITERATURA. (Crónica)


Sal em carne viva

O Festival Literário da Madeira (FLM) foi mais do que Literatura. O FLM foi feito de palavras, sim, mas também de afectos, de trabalho e de alteridade. Principalmente, de alteridade.
Foi com muito agrado que aceitei o convite da Nova Delphi para ir ao encontro das pessoas fora da literatura, fora do teatro, fora do Funchal.
Na companhia dos escritores Valério Romão, Manuel Jorge Marmelo, Tiago Baltasar, Francisco Camacho e do jornalista Luís Caetano, fui ouvir as histórias de alguns dos pescadores. Fomos até Paul do Mar, uma pequena aldeia com cerca de 800 habitantes do concelho da Calheta.
Entrámos num bar. Fotografias de pescadores forravam duas paredes. Havia em todos os olhares a noção da tragédia. Era uma galeria de mortos.
Tínhamos um homem a quem nos dirigir. Era um pescador de uma dessas fotografias. Queríamos as suas histórias. Não as ouvimos. Ele morrera num acidente de pesca. O corpo não foi recuperado. O pai, também pescador, ficou sem o seu filho.
Saímos do bar e fomos à procura do capitão do barco onde havia trabalhado esse pescador. O pudor amarrou-lhe as palavras. Não quis falar. Há medo, respeito e dor, muita dor, dentro das recordações.
Decidimos descer a rua até à doca. Estavam 3 pescadores a montar um aparelho para a pesca do peixe-espada preto. Demonstraram disponibilidade para conversar.

Os pescadores são pessoas viciadas em resistência. Sobrevivem contra as leis do homem e contra a impiedade do mar. Segundo este grupo de 3 homens, um dos males do comércio de peixe é a imposição do preço por quem compra. É o comprador, neste caso a lota, que estipula o preço do peixe, ao contrário do que acontece com outros locais e outros produtos. O pescador não estipula o preço de venda do seu trabalho.

O temporal, as despesas de manutenção com o material e as dívidas acumuladas empurram a vida para a fronteira com o insustentável.
“Se pudesse, transformava o meu barco em barco para passeios turísticos, mas é preciso muito dinheiro...”, ouvi.
A pesca é cada vez mais reduzida. Há necessidade de se afastarem mais da costa, e os peixes são apanhados cada vez mais precocemente, pondo, desta forma, em causa a própria existência das espécies.
Senti-me a observar uma fractura exposta. Afastei-me um pouco e fui visitar os barcos atracados. Estes estão presos por problemas com a rampa por onde descem para o mar. “Está pouco funda”, disse. “Estamos à espera que venham cá tratar disso”
Despedimo-nos e fomos conversar com outro pescador. Era novo, na casa dos 30 anos, e tinha um braço coberto de ligaduras. Ele contou-nos a sua história.
Muitas vezes têm necessidade de saltar do barco para dentro de água para libertar golfinhos, ou desembaraçar a rede. Foi o que ele fez. Já dentro de água, foi atacado por um espadarte que lhe trespassou o braço com o seu maxilar superior, muito conhecido por ter um formato de espada. Um pouco mais ao lado, e o pescador teria sido morto.

 Um espadarte pode atingir cerca de 500 quilos.

“E nós, aqui, só temos palavras para esta gente”, pensei enquanto voltávamos para o Funchal.
A ficção de Moby Dick” e de “O Velho e o Mar” tiveram um grande impacto na minha formação como leitor. Lembrei-me de Melville e de Hemingway quando olhei para o mar vasto.
A Literatura esperava por nós dentro do Teatro Municipal Baltasar Dias.
As palavras dos pescadores de Paul do Mar têm arestas, raspam e cortam. São feridas expostas pela vida passada à caça de sustento no Atlântico.
O mar é fonte de vida, mas também é depositário dos corpos de pais e de filhos. O mar é bênção e berço de ritual tragédia.
De onde vem a subsistência vem também o fim. Os pescadores estão presos nessa dualidade.
Sento-me numa cadeira confortável e escrevo sobre a profunda angústia dos olhos daquela gente que transcende a literatura. Há muita dignidade naquelas mãos vincadas pelas redes, pela água, pelo sal.
Penso eu, sentado numa confortável poltrona.

Mário Rufino
Festival Literário da Madeira, Funchal.

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