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“Viagem à Volta do meu Quarto”, de Xavier de Maistre



“Viagem à Volta do meu Quarto” (Tinta-da-china), de Xavier de Maistre (Sabóia, 1763-1852) é um clássico da literatura de viagens. Nesta edição, o texto que nomeia o livro é seguido de “Expedição Nocturna à Volta do meu Quarto”.
Os dois textos foram escritos enquanto o autor, que foi militar durante muito tempo, estava fora do campo de batalha e enclausurado no seu quarto, ora por imposição (devido a um duelo) ora por vontade própria.
Em Turim, Xavier de Maistre começa a “Viagem à Volta do meu Quarto” com a ironia que irá perpassar todo o texto:
“Que glorioso é iniciar uma nova carreira, e aparecer de repente no mundo erudito, com um livro de descobertas na mão, tal um cometa inesperado brilhando no espaço!”
Tal qual o seu aposento fosse uma cidade ou um país, o viajante diverte-se em registar a topografia do local. São 42 dias de viagem relatados em 42 capítulos por um homem grato por estar protegido do clima violento da Revolução Francesa.  
O enclausuramento implica que as viagens sejam essencialmente interiores. É através da alma que o “eu” se desloca. Maistre, viajante experimentado em países europeus e na Rússia, era um homem de família aristocrata e com posses. No entanto, o austero quarto em que se encontrava enclausurado era por si considerado como opulento, pois tinha mais do que era necessário para a sua viagem interior. Esse quarto era partilhado com uma cadela e visitado, sempre que necessário, por um criado.
Durante esses dias o autor aplica o  “sistema da alma e do animal” quando avalia a música, a pintura, ou mesmo quando se detém perante o espelho e se analisa a si próprio.
“O espelho oferece ao viajante sedentário mil reflexões interessantes, mil observações que o tornam um objecto útil e precioso” São essas “mil reflexões interessantes” e a imaginação que proporcionam à alma que se desembarace da matéria.
Maistre viaja pela mão de Homero, de Virgílio, Milton, etc. A literatura liberta-o da clausura:
“proibiram-me de percorrer uma cidade, um ponto; mas deixaram-me o universo inteiro: a imensidão e a eternidade estão às minhas ordens.
O dualismo entre corpo e alma é essencial em “Viagem à Volta do meu Quarto” O corpo é visto como “um outro” limitado pelo espaço. A alma tem liberdade para vaguear sem constrangimentos. A viagem do corpo é sempre limitada, seja pelo tempo cronológico da sua deslocação, pelo espaço onde se desloca ou simplesmente por falta de meios económicos. A imaginação é o consolo do homem perante a realidade. O viajante é esse alguém que imagina. É isso que o leitor também faz: viaja enquanto entrega o corpo à inacção.
Os dois textos demonstram o dualismo do pensamento do autor. A dicotomia “corpo” e “alma”, em “Viagem à Volta do meu Quarto”, encontra equivalente na antagónica relação entre  a “razão” e o “sentimento”, em “Expedição Nocturna à Volta do meu Quarto”
Apesar da prosa bem trabalhada, a sequela carece da ironia do texto que o antecede e padece de redundância temática.
O quarto de Xavier de Maistre não é o mesmo, mas tal não merece maior atenção do autor, pois em muito se assemelha ao quarto de Turim onde esteve em prisão domiciliária. Neste caso, o escritor nascido em Sabóia é um recluso por opção própria, pois “havia muito tempo que desejava tornar a ver o país que outrora percorrera tão deliciosamente”.
Já sem o criado Joannetti, que o serviu durante 15 anos, a interpelação ao leitor continua em paralelo com as agora constantes menções a “querida Marie”. É com alguma amargura que recorda o seu criado ao ponto de afirmar que “ as recordações da felicidade passada são as rugas da alma”
As dicotomias continuam. A tensão entre “alma” e “corpo” suavizou-se e foi secundarizada pela relação entre “coração” e “raciocínio”:
“Que duas estranhas máquinas, exclamei, são a cabeça e o coração do homem! Levado alternadamente por estes dois móveis das suas acções para duas direcções contrárias, a última que segue parece-lhe sempre melhor”
A imaginação continua a ser o veículo de transporte, etéreo, capaz de o levar a grandes velocidades para qualquer lugar e de provocar emoções. Maistre senta-se numa janela, com uma perna para o exterior do quarto e a outra para o interior, e imagina-se a galopar. Mas o que ele queria era o cavalo de pau, mencionado nos contos de “Mil e uma Noites”, para poder viajar pelos ares como um relâmpago. Maistre continua a utilizar a literatura para alimentar a imaginação (Pedro Mexia, autor do prefácio, sublinha a influência de Tristam Shandy). É através da imaginação que, em “Expedição Nocturna à Volta do meu Quarto”, Maistre pede aos deuses para interceder junto da humanidade. As constantes interpelações ganham assim uma nova tonalidade. Xavier de Maistre interpela, usando constantemente o vocativo, os deuses da mitologia grega e o leitor. A importância do leitor, nos dois textos, é frequentemente radicalizada:
“ (...) espero que o leitor sensível me perdoe ter-lhe pedido algumas lágrimas; e se alguém achar que na verdade eu devia ter eliminado este triste capítulo, pode cortá-lo no seu exemplar ou mesmo atirar o livro para o fogo”
O autor passa de um estado perto da euforia, em “Viagem à Volta do meu Quarto”, para uma postura mais introspectiva e menos alegre em “Expedição Nocturna à Volta do meu Quarto”. A menção ao seu criado é substituida pela constante evocação de uma imaginada vizinha. O tom melancólico da prosa denota um homem mais desiludido e interrogativo:
“Porque injusto e extravagante capricho havia eu de encerrar um coração como o meu nos limites estreitos de uma sociedade?”
Escrito em 1794, “Viagem à Volta do meu Quarto tem resistido ao tempo. O sucesso levou a que o autor escrevesse a já mencionada sequela passada num outro quarto fora da cidade de Turim. Cerca de 220 anos depois, os dois textos são tão interessantes como no tempo em que foram escritos.


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