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"O Luto É a Coisa com Penas", de Max Porter







Dor nas garras do corvo.

Em que género literário colocamos "O Luto É A Coisa Com Penas" (Elsinore)?
Max Porter rompe com os limites dos géneros literários. O livro vencedor do  "Dylan Thomas Prize Award" não obedece a ideias canónicas. "O Luto É A Coisa com Penas" causa estranheza desde a estrutura até à forte influência do simbolismo.
Construção meta-literária, com presença fundamental de Ted Hughes  (tema de estudo do pai), o primeiro romance do editor da “Granta Books” inquieta e transtorna.
A mãe morre num acidente doméstico. O processo de luto desta família, composta por marido e dois filhos, é duro.  O leitor sente isso porque Porter consegue, sem histrionismo, afectá-lo.
Ao longo do luto, a que o pai chama de "projecto a longo prazo", continuar a viver sem a mãe tem na culpa o maior impedimento. Há uma constante negociação entre a dor e a esperança. As rotinas diárias tentam perpetuar a presença da pessoa falecida.
A unidade do texto não se baseia na evolução da história. A narração do luto aproxima-se da poesia quando se afasta da lógica e se desenvolve em verso livre. A juntar a esta estrutura irregular, mas com óbvias afinidades com a prosa, existem diversos elementos simbólicos, em que o corvo é componente fulcral. O encadeamento da voz do pai com as dos filhos e ainda com as do corvo acontece em capítulos curtos, onde a família expõe a dor da perda. A polifonia permite capturar as várias tonalidades da angústia.
O corvo ajuda esta família a conviver com perda e a elaborar uma nova narrativa, uma nova vida. Ele chega com um objectivo estabelecido: ficar até que a família não precise mais dele.
Esta psicoterapêutica tão singular permite a estas personagens “mastigadas pela tristeza” aceitar a realidade da perda, elaborar a dor dessa mesma perda e a ajustarem-se e reposicionarem-se, emocionalmente, para continuar a viver:
"Eu podia tê-lo dobrado para trás sobre uma cadeira e ter-lhe
administrado a conta-gotas comunicados desagradáveis
em torno da hora exata da morte da mulher. OUTROS
PÁSSAROS TÊ-LO-IAM FEITO, não há bons nem maus
neste reino. O melhor é pôr mãos à obra."
Max Porter, em entrevista [Foyles.co.uk], afirmou que o corvo não é o de Ted Hughes; é o corvo do pai, dos filhos, o seu próprio, o dos leitores, e ainda se representa a si próprio, com toda a "bagagem" mitológica e literária inerente.
O corvo é um totem espiritual. Pode significar a magia da vida, a transformação pessoal. É audaz e manhoso. Simboliza a morte e o destino. A "coisa" a que se refere o título é aberta a várias ligações ou interpretações. Tanto pode ser positiva como negativa; tanto pode ser a negrura como a luz. Não é inocente que o título tenha sido adaptado de um verso de Emily Dickinson: "A esperança é a coisa com penas".
Este livro de Max Porter é uma metáfora da própria vida; desta continuar, inevitavelmente, ultrapassando a dor em busca da esperança, da paz. No caso do pai das duas crianças, essa busca acontece através da arte. É a poesia que o ajuda a enfrentar a mudança e chegar à conclusão de que a fronteira entre a desgraça e a felicidade é muito ténue.  A linguagem é fundamental no ultrapassar do luto e na manutenção da própria “existência” da mãe na memória dos filhos. A palavra, sem alçapões ou subterfúgios, é a melhor morada para as recordações:
"AMO-TE AMO-TE AMO-TE
e a voz deles era a vida e a canção da sua mãe"
Há muita qualidade em pouco mais de cem páginas. "O Luto É A Coisa Com Penas" deixa marcas no leitor.



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