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‘O Corpo Dela e Outras Partes’, de Carmen Maria Machado, mostra-nos que o corpo é um campo de batalha






As ideologias e práticas sociais têm no corpo, especialmente no feminino, um campo de batalha. Sobre a mulher têm incidido prescrições morais e ideológicas. O sexo é ainda algo “sujo”, mantido debaixo da vergonha. A sua prática é vista como “guilty pleasure”, indigna de ser mencionada. Quando não é consentido e só existe como meio de domínio, o silêncio protege o abusador. Mas algo vem mudando nestes últimos anos.
O abuso sexual, denunciado por movimentos como os do #metoo, é de discussão pública. O mesmo se passa com a violência doméstica, crime anteriormente silenciado pela vergonha. Lentamente, a sociedade tem-se transformado e ido ao encontro de uma maior liberdade de acção e pensamento. Se é o suficiente? Não o é para quem sofre e denuncia essas limitações assimiladas ao longo de séculos.
Foi imbuída destas tensões que Carmen Maria Machado escreveu O Corpo Dela e Outras Partes (Alfaguara).
A escritora norte-americana põe o corpo no centro da questão enquanto desmonta, narrativa após narrativa, as diferentes consequências da impreparação da sociedade para aceitar a riqueza de diferentes tipos de individualidades, a redefinição do género e novas concepções de núcleos familiares.
As hierarquias esbatidas próprias de famílias organizadas em rede – e mais fragmentadas – encontram na pluralidade de narrativas e na fragmentação de muitas delas a melhor forma de análise. Essa fragmentação é ainda mais relevante em “Especialmente abominável”, onde Carmen Maria Machado “vira o jogo”.

Se a modelização das séries televisivas tem retirado relevância à ficção literária, a divisão das histórias em capítulos, que existem como parte de um todo sem perda de autonomia, fornece um maior fôlego para quem conta uma história. A autora utiliza essa estrutura na narração de várias histórias, modulares e coerentes. Inventário é outro dos contos fragmentados e, neste caso, pequenas histórias espelham a diversificada vida sexual da narradora. O sexo, para Carmen Maria Machado, é tão visceral como o de Eimear McBride, para quem a libido parece esbater fronteiras morais.
O encanto destas narrativas não depende, no entanto, de pornografia gratuita; são histórias em que a presença de elementos estranhos, como a fita de O Ponto do Marido, a defesa da liberdade sexual e de pensamento (a religião é substituída pela música e literatura em Mães) fazem com que o leitor queira acompanhar a voz de quem conta.
No fim, depois de se conhecer todas estas personagens, percebe-se que há algo de comum a todas elas.
“Se pensarmos bem”, é afirmado em O Ponto do Marido, “as histórias têm esta característica comum de se unirem como gotas de chuva num charco. Nascem das nuvens, separadas umas das outras, mas, assim que se juntam, torna-se impossível distingui-las.
É a mulher vista por uma escritora com algo para dizer, e di-lo com o mínimo de pudor. Em entrevista a Isabel Lucas, para o suplemento Ípsilon do jornal Público, a autora afirma: “Escolho as palavras que parecem adequar-se. Por exemplo, não sei como a palavra cunt [cona] foi traduzida. É uma palavra que uso porque é a minha palavra preferida. (…) O facto de ser directa, eficaz, agrada-me, por isso é uma palavra que gosto de usar. É tão bonita! É precisamente dessa forma desempoeirada e menos canónica de contar e de dar a conhecer as personagens que provam a qualidade de O Corpo Dela e Outras Partes.




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